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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Revisão por Pares

Resumo
A revisão por pares é considerada um dos grandes pilares da ciência contemporânea, sendo fundamental para a dinâmica da produção científica nacional e internacional. O objetivo deste trabalho foi realizar uma análise crítica sobre o processo de revisão por pares. Foram descritos alguns de seus componentes históricos e também ressaltada sua importância para as comunidades de pesquisadores e editores. Por fim, foram levantados alguns problemas inerentes ao exercício desse tipo de legitimação do conhecimento científico e apresentadas sugestões de alternativas para aprimoramento de sua prática.

Introdução
Nos tramites acadêmicos, a revisão por pares é um processo utilizado para verificar: (i) a viabilidade de publicação de periódicos científicos e livros didáticos; e (ii) a concessão de recursos para pesquisas (ref). O objetivo da revisão por pares é tornar a publicação mais confiável no que se refere as informações divulgadas assim como verificar a viabilidade de projetos de pesquisa. No caso de publicações, os revisores (referees), que se mantêm geralmente anônimos ao autor, auxiliam ESTE ULTIMO na identificação de pontos do texto ainda não bem esclarecidos, assim como procuram detectar e informar inconformidades. Os referees auxiliam o editor da revista, a quem cabe a autorização ou não da publicação dos escritos. Basicamente, esta revisão consiste em submeter o trabalho científico à apreciação de especialistas da área correspondente ao tema tratado pelo texto para depositar credibilidade ao que foi ali escrito.
A dinâmica da produção científica nacional é de fundamental importância para a sociedade moderna, pois seus impactos são diretos e indiretos sobre o desenvolvimento tecnológico e social do país. Por isso, representantes de diversas camadas desta sociedade devem estar a par das possibilidades e viabilidade do planejamento estratégico das ciências e tecnologias, e de suas administrações. A revisão de periódicos e de futuros trabalhos é uma ferramenta que tanto as revistas como os orgãos de fomento possuem para legitimar linhas de pesquisa segundo interesses editoriais ou de cunho político. Via de regra, se seguida a rigor, essa prática confere elementos de valorização às revistas e agências de fomento junto aos acadêmicos e ao poder público.
A comunidade científica brasileira privilegia a publicação de artigos em revistas internacionais. As revistas nacionais acabam sendo a segunda opção por conta de: (i) valorização que os orgãos de fomento atribuem aos trabalhos publicados principalmente em lingua inglesa, (ii) devido a competitividade existente entre pesquisadores locais e (iii) a credibilidade dada a essas revistas que está diretamente relacionada aos seus revisores, que podem fazer parte de grupos locais rivais.
Nesse contexto, o estudo da Política de Ciência, Tecnologia e Inovação, embora seja uma área que somente em tempos recentes veio a consolidar-se formalmente no país (Costa e Szmrecsányi, 2007), é componente essencial na elaboração de estratégias de desenvolvimento. O processo de avaliação por pares, apesar de prática já cristalizada nos meios de C,T & I, não é isento de ser analisado e, uma vez questionado, possibilita o planejamento de novos mecanismos de produção, legitimação e circulação do conhecimento.

Uma breve história: das cartas aos periódicos
A comunicação da ciência passou por algumas transições importantes ao longo da história, o que influenciou o desenvolvimento de distintas formas de validação. Os veículos primordiais de circulação do conhecimento foram correspondências pessoais entre os cientistas. Tais cartas eram endereçadas a pessoas ou grupos específicos e não eram revisadas, o que conferia certa limitação à circulação da informação científica. Também eram realizados encontros para experimentos e discussões coletivas no surgimento da chamada “Nova Filosofia” ou “Filosofia Experimental” (McKie, 1966).
Com a crescente prática de reuniões das sociedades científicas emergentes (a partir dos chamados “colégios invisíveis”) foram criadas as atas ou anais, que aglutinavam diversos relatos de pesquisa em um único caderno. Nesse caso, o conhecimento gerado recebia o aval da comunidade de pesquisadores em paralelo à publicação, de modo que os artigos eram lidos e discutidos durante os eventos.
Por fim, em meados do século XVII, foram editadas as primeiras revistas científicas periódicas (a Journal des Sçavants na França e a Philosophical Transactions of the Royal Society of London na Inglaterra), auxiliares vitais das sociedades científicas (embora sem continuidade, algumas iniciativas pontuais já haviam surgido na Itália ainda no século XVI) (MacKie, 1966). Tal modelo foi mantido por séculos e chegou praticamente inalterado em sua essência até os dias de hoje. A grande maioria, senão a totalidade, dos periódicos científicos utilizam o processo de revisão por pares como ferramenta essencial do processo de editorialização.
Atualmente, apesar de existir a coexistência entre estes três formatos de difusão básica da ciência (cartas, anais e periódicos), as revistas certamente representam o veículo oficial com maior aceitação e credibilidade.
O modo de construção do conhecimento, no entanto, vem sendo alterado. Com as facilidades de circulação de informações e pessoas, cada vez mais os grupos de pesquisas são capazes de promover parcerias. A ciência contemporânea passou a ser desenvolvida em colaboração. A metodologia de avaliação dos trabalhos produzidos deverá seguir novas diretrizes para ser mais democrática e por isso com maior credibilidade.
A revisão por pares é comumente aceita como uma parte essencial da publicação científica. Em essência, ela procura ser um processo ético de agregação de valores. Na prática, as formas de revisão por pares que são colocadas em exercício variam de revista para revista e de orgão de fomento para orgão de fomento, o que faz do processo de avaliação por pares ser certamente um tema controverso. O papel representado pelos revisores de trabalhos científicos é motivo de ampla discussão, suscitando inclusive linhas específicas de pesquisa.
Os referees, inicialmente, para analisar criteriosa e profundamente os trabalhos científicos devem ter competência, conhecimento e domínio dos assuntos tratados no texto que por eles será avaliado. A desqualificação do processo de divulgação nacional através dos periódicos acaba por alargar ainda mais o fosso que separa os programas editoriais nacionais daqueles congêneres internacionais, estes já suficientemente valorizados e consolidados.

A importância da revisão por pares
O grau de importância da revisão por pares na comunidade científica é incrivelmente alto. É o que mostra uma ampla pesquisa realizada pela editora Elsevier, na qual autores de todo o mundo que publicaram recentemente em periódicos das mais diferentes especialidades respondem a um extenso questionário. Quando perguntados sobre quais os critérios mais determinantes ao se escolher uma revista para submeter artigos, os dois mais mencionados referem-se à revisão por pares (Figura 1). A rapidez (com 82% de menções) e a padrão estabelecido no processo (78%) superam elementos também muito importantes como o fator de impacto (66%) e o próprio corpo editorial (56%).

Figura 1: Grau de importância de diferentes critérios levantados por autores científicos considerados determinantes ao se escolher um periódico para submeter artigos. (Fonte: Elsevier)

O resultado não foi muito diferente quando os autores foram questionados sobre quais as tarefas a que mais se dedicavam em suas rotinas. Dentre uma extensa listagem de atividades relacionadas à pesquisa, ensino e extensão, grande parte dos cientistas reconheceram que dedicam a maior parte de seu tempo na revisão de manuscritos (Figura 2). O mais surpreendente é que responder e elaborar pareceres sobre trabalhos científicos (33% de menções) requer maior quantidade de tempo que a própria produção de dados através de experimentos (31%).


Figura 2: As três atividades mais mencionadas por cientistas como aquelas que ocupam maior tempo de dedicação. (Fonte: Elsevier)

Dada a relevância da Elsevier, uma das maiores editoras científicas do mundo, a pesquisa é prova concreta da grande importância da revisão por pares na construção do conhecimento científico. Os resultados apontam a crescente necessidade de estudo e planejamento sobre o processo por parte não somente da gestão dos periódicos científicos, mas também através de medidas amplas de política científica e tecnológica.

A revisão por pares em xeque
Apesar do consenso majoritário entre os cientistas sobre a importância da revisão por pares, uma minoria aprova a maneira com que sua prática é realizada. É o que levanta o II Simpósio Internacional em Revisão por Pares (ISPR, na sigla em inglês), que será realizado entre os dias 29 de junho e 2 de julho deste ano em Orlando, nos EUA. O evento apresenta uma proposta bastante desafiadora: revisar a revisão por pares, um dos grandes pilares edificadores da ciência.
Muitos outros aspectos, além dos científicos, afetam a seleção de artigos para os periódicos. O prestígio do pesquisador e a qualidade de sua instituição de origem, por exemplo, muitas vezes sobrepõem o mérito do conteúdo e determinam a aceitação ou não do trabalho para publicação. Além disso, a revisão por pares nem sempre exerce um julgamento razoavelmente imparcial e isento de referências a características subjetivas da produção e da incorporação da ciência na sociedade.
O editores das revistas são responsáveis por grande parte dessa subjetividade na avaliação dos trabalhos. Considerados verdadeiros “porteiros da ciência” (Crane, 1967), muitas vezes acumulam poder de decisão e indicação de revisores e deixam de atuar como mediadores da circulação para ocuparem a perigosa posição de controladores do conhecimento.
Ainda, a revisão por pares é relativamente restrita e raramente representa o esperado consenso coletivo sobre a qualidade e legitimidade dos artigos. A grande maioria das revistas considera apenas dois revisores. Periódicos de grande impacto em geral utilizam cinco pareceristas em suas avaliações. Em qualquer um dos casos, é muito pouco perto das centenas ou até milhares de pesquisadores em cada área que constituem as comunidades científicas atuais. De fato, a decisão sobre a aceitação de um trabalho não chega nem perto de significar um consenso da comunidade de determinado campo científico.
Estimulados por agências de fomento do desenvolvimento científico e tecnológico, os debates sobre essa prática de revisão são cada vez mais creditados no Brasil e no mundo.
As indagações a respeito da avaliação de manuscritos não se referem às diferenças de pareceres, bem elaborados, emitidos por pesquisadores das diferentes áreas disciplinares, cujas recomendações, embora distintas e por vezes divergentes, são de extremo valor, especialmente naqueles artigos que abordam temas multidisciplinares, sempre contribuindo para o aprimoramento do trabalho e da própria produção de conhecimento.
As dificuldades aparecem naquelas situações nas quais o objetivo procurado, ou seja, a detecção de "falhas" apresentadas nos originais é feita de modo pouco preciso e um tanto superficial. O que pode ou deve ser feito para incrementar o padrão das revisões? Como os revisores devem ser selecionados e acionados? Deve ser mantido o anonimato, tanto dos revisores quanto dos autores? Como garantir a mesma qualidade de análise oferecida, às agências de fomento, na análise dos projetos de pesquisa e de seus resultados?

Poucas respostas, porém algumas alternativas
As respostas a essas indagações ainda são poucas, porém têm trazido informações relevantes e revelado a possibilidade de novos formatos para a revisão por pares.
A adoção do anonimato, tanto dos autores quanto dos revisores, não traz diferenças substanciais em relação à análise nele baseada. Características de estilo e de assunto, por exemplo, são particulares a cada autor e muitas vezes facilmente reconhecidas por pares experientes. Dessa forma, variar entre a revisão anônima e a chamada “revisão por pares aberta” não altera significativamente a qualidade da revisão por pares (Crane, 1967; Rooyen et al., 1999).
O papel dos revisores também tem sido re-avaliado. Atualmente pouco reconhecidos, os pareceristas de periódicos não recebem outros benefícios além do acesso antecipado a ideias que estão na fronteira do conhecimento. Por isso muitas vezes fazem revisões superficiais ou demoram em demasia para responder aos editores. A valorização do trabalho dos revisores contribuiria de alguma forma para a melhoria da qualidade dos artigos e também da rapidez da resposta.
Atualmente, cada vez mais os periódicos buscam pela automatização do seu processo de produção como um todo, desde a submissão do trabalho pelo autor e a avaliação pelos pares, até a editoração, impressão e administração da revista. O uso de tecnologia digital e de redes de informação estão alterando consideralvelmente o tipo dos veículos de comunicação da ciência (Stumpf, 1996), e já provocam algumas mudanças na natureza de legitimação do conhecimento.
Além de facilitar e agilizar o processo de revisão, o uso de redes digitais de informação possibilita o surgimento de um formato inovador na avaliação por pares, no qual todos os integrantes de determinada comunidade científica possui o potencial de atuar como pareceristas dos artigos submetidos. Chamada aqui de “revisão por pares integrada”, o processo consiste em disponibilizar a versão submetida na internet com acesso em rede interna aos membros cadastrados daquela comunidade científica. Cada membro individualmente pode atuar como parecerista. Omissões são consideradas como aprovações sem críticas. Só serão publicados os trabalhos que obtiverem uma maioria de aprovações. Apesar de bastante complexo e trabalhoso, tal formato proporciona o tão desejado consenso na avaliação de artigos e evitaria os constantes conflitos característicos da revisão por pares restrita a apenas 2 ou 5 pareceristas.

Conclusão
O complexo processo de produção científica tem uma dinâmica bastante própria e é objeto de debate acerca das possibilidades e viabilidade de seu impacto direto e indireto sobre a sociedade (Goldbaum, 1999). A revisão por pares é um componente fundamental deste processo por justamente caracterizar a ciência e distingui-la de outras formas de produção de conhecimento. O presente trabalho, além de ressaltar a importância da revisão por pares, propõe a necessidade de um constante questionamento e planejamento da prática não somente pelos corpos editoriais dos periódicos científicos mas também, de forma abrangente, pelas políticas públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação.

Bibliografia:

Costa, M.C. & Szmrecsányi, T. (2007). Perspectivas para a política científica e tecnológica no Brasil. Ciência e Cultura núm. 4, pág. 22-23
Crane, D. (1967). The gatekeepers of science: some factors affecting the selection of articles for scientific journals. The American Sociologist nov., pág. 195-201.
Goldbaum, M. (1999). A Revisão de artigos científicos. Revista de Saúde Pública vol. 33, núm. 4
McKie, D. (1966) The rise of scientific societies and periodicals. Phys. Ed. vol 1, pág. 213-222
Rooyen, S.; Godlee, F.; Evans, S.; Black, N.; Smith, R. (1999). Effect of open peer review on quality of reviews and reviewers’ recommendations: a radomised trial. British Medical Journal vol. 318, pág. 23-27
Stumpf, I.R.C. (1996) Passado e futuro das revistas científicas. Ciência da Informação vol 25, núm. 3

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